terça-feira, 2 DE julho DE 2024
spot_img
Luiz LlantadaCrônica | O homem das cavernas

Crônica | O homem das cavernas

Publicidade

Demorou para que o homem primitivo saísse da caverna. Nos primórdios
da humanidade ele vivia entocado, com medo de sair e ser devorado pelas feras,
ou morto por outro homem, que vivia tão apavorado quanto ele. As florestas
eram indevassáveis, densas, compactas. Além do mais ele não tinha roupas
adequadas para proteger-se do rigor das intempéries.

Como precisava sobreviver foi obrigado a sair da toca. Com o decorrer do
tempo veio o progresso. O que lhe deixou cada vez mais confiante. A
necessidade de trabalhar, estudar ou passear obrigava-o a sair à rua. Some-se a
isso as grandes distâncias que o forçavam a viajar. O homem passou a ser
praticamente um estranho dentro da própria casa.

Eu mesmo, quando jovem, morava em Porto Alegre, trabalhava o
dia todo e estudava à noite. Durante anos eu via meus pais quase que só aos fins
de semanas e feriados. Saía cedo, almoçava e lanchava no centro da cidade.
Chegava em casa por volta da meia noite. Tanto quando eu saía como quando
chegava, eles estavam dormindo. Assuntos domésticos, corriqueiros, do dia a dia
resolvíamos por bilhetinhos. É bom lembrar que não se tinha telefone em casa.

Com o passar do tempo, o mundo evoluiu. Ficou mais agitado e perigoso.
A humanidade teve que mudar sua rotina. Eu hoje já estou me comparando ao
homem das cavernas. Voltei pra toca. Fui diminuindo gradativamente o ritmo do
meu trabalho e levei o meu escritório para casa. O telefone e o fax foram os
primeiros a diminuírem as minhas saídas para a rua. Aí veio o computador, a
Internet, os e-mails, o celular e o diabo-a-quatro. Por fim: a aposentadoria.

Hoje tenho amigos e colegas muitos dos quais nunca lhes vi o rosto. De
vez em quando eu inventava a desculpa de ir comprar o jornal ali na esquina só
para sair de casa. Agora o leio pela Internet. Ah! Mas tinha a desculpa e ir ao
cinema ou assistir um jogo de futebol em Porto Alegre e, pronto, lá estava eu, de
novo, livre para voar. Livre? Livre o cacete! A televisão por assinatura e outros
recursos tecnológicos me dão tudo isso e muito mais na minha sala.

Mas a gente sempre achava um pretexto para sair. Eu e minha mulher, vez
que outra, saíamos para almoçar ou jantar num restaurante ou em casas de
amigos. Um bailezinho de vez em quando. Enfim: livres! Será? Veio a “Lei
seca”. Agora é proibido beber uma tacinha de vinho e depois dirigir. Fica em
casa! Uma voz me alerta. Meu último gesto de liberdade são as caminhadas.
Ando por ruas, praias e campos. Vejo e falo com pessoas, olho vitrines e
fachadas dos prédios. Um cachorro que me sacode o rabo me alegra. Uma alma
maldosa me sussurrou ao ouvido “Compra uma esteira. Caminha em casa”.
Pensei em matá-lo… Achei melhor não! A prisão e o remorso seriam piores.


spot_img
spot_img

Matérias Relacionadas

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Damos valor à sua privacidade

Nós e os nossos parceiros armazenamos ou acedemos a informações dos dispositivos, tais como cookies, e processamos dados pessoais, tais como identificadores exclusivos e informações padrão enviadas pelos dispositivos, para as finalidades descritas abaixo. Poderá clicar para consentir o processamento por nossa parte e pela parte dos nossos parceiros para tais finalidades. Em alternativa, poderá clicar para recusar o consentimento, ou aceder a informações mais pormenorizadas e alterar as suas preferências antes de dar consentimento. As suas preferências serão aplicadas apenas a este website.

Cookies estritamente necessários

Estes cookies são necessários para que o website funcione e não podem ser desligados nos nossos sistemas. Normalmente, eles só são configurados em resposta a ações levadas a cabo por si e que correspondem a uma solicitação de serviços, tais como definir as suas preferências de privacidade, iniciar sessão ou preencher formulários. Pode configurar o seu navegador para bloquear ou alertá-lo(a) sobre esses cookies, mas algumas partes do website não funcionarão. Estes cookies não armazenam qualquer informação pessoal identificável.

Cookies de desempenho

Estes cookies permitem-nos contar visitas e fontes de tráfego, para que possamos medir e melhorar o desempenho do nosso website. Eles ajudam-nos a saber quais são as páginas mais e menos populares e a ver como os visitantes se movimentam pelo website. Todas as informações recolhidas por estes cookies são agregadas e, por conseguinte, anónimas. Se não permitir estes cookies, não saberemos quando visitou o nosso site.

Cookies de funcionalidade

Estes cookies permitem que o site forneça uma funcionalidade e personalização melhoradas. Podem ser estabelecidos por nós ou por fornecedores externos cujos serviços adicionámos às nossas páginas. Se não permitir estes cookies algumas destas funcionalidades, ou mesmo todas, podem não atuar corretamente.

Cookies de publicidade

Estes cookies podem ser estabelecidos através do nosso site pelos nossos parceiros de publicidade. Podem ser usados por essas empresas para construir um perfil sobre os seus interesses e mostrar-lhe anúncios relevantes em outros websites. Eles não armazenam diretamente informações pessoais, mas são baseados na identificação exclusiva do seu navegador e dispositivo de internet. Se não permitir estes cookies, terá menos publicidade direcionada.

Visite as nossas páginas de Políticas de privacidade e Termos e condições.

Importante: Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência, de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.